Pesquisas tinham falhas metodológicas que, ao serem revisadas, apontaram que não havia conclusão de que a substância poderia ser usada
Após mais de quatro anos de polêmica, o estudo assinado pelo infectologista francês Didier Raoult, sobre o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina, que fundamentou a indicação deste medicamento contra a Covid-19, foi invalidado pelo editor da revista científica que o publicou.
A hidroxicloroquina e a cloroquina são medicamentos usados contra a malária e derivados sintéticos de uma mesma substância, chamada quinina. Mas as moléculas ganharam notoriedade em fevereiro de 2020, quando teve início a pandemia de Covid-19, pela sua possível eficácia no tratamento contra a doença.
O responsável pela promoção do remédio foi o médico Didier Raoult, na época chefe do (IHU) Instituto de Infectologia do Hospital Universitário de Marselha, no sul da França. O infectologista – aposentado desde 2021 e recentemente proibido de exercer a medicina – nunca deixou de afirmar que a hidroxicloroquina, combinada com um antibiótico, a azitromicina, era eficaz contra a infeção.
Um dos estudos fundadores desta teoria, assinado por dezoito autores, incluindo Philippe Gautret, ex-professor do IHU, e Didier Raoult, foi publicado em março de 2020 na revista científica International Journal of Antimicrobial Agents. A Elsevier, editora da revista, anunciou na terça-feira (17) a retratação deste artigo após uma pesquisa aprofundada, com o apoio de um “especialista imparcial que atua como consultor independente em ética editorial”.
A publicação questionou o incumprimento de diversas regras, mas também a manipulação ou interpretação problemática de resultados.
A editora afirma ainda que os autores do estudo não argumentaram de forma convincente em sua defesa. Ao longo dos anos, Didier Raoult tornou públicos vários estudos que mostravam, segundo ele, a eficácia da hidroxicloroquina, mas que foram posteriormente criticados por falhas metodológicas (grupos de pacientes muito pequenos, falta de grupo de controle, etc.) ou éticas (não conformidade com as regras para pesquisa sobre pessoas, etc.).
Cloroquina defendida por Bolsonaro
A empolgação em torno da hidroxicloroquina tomou um rumo político no começo da pandemia de Covid-19. Emmanuel Macron chamou Didier Raoult de “grande cientista” em meados de abril de 2020 e considerou que sua terapia dupla deveria ser “testada”. Mas logo o governo francês voltou atrás e retirou seu apoio ao remédio.
No Brasil, Jair Bolsonaro, presidente na época, foi um árduo promotor da cloroquina. Entre março de 2020 e janeiro de 2021, houve ao menos quatro medidas federais promovendo diretamente ou facilitando a prescrição do medicamento, segundo o levantamento feito por pesquisadores do Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário da USP (Cepedisa) em parceria com a Conectas Direitos Humanos.
Entre as medidas do governo Bolsonaro estão um protocolo do Ministério da Saúde de 20 de maio de 2020, recomendando o uso da cloroquina em todos os casos de Covid-19, e o aplicativo TrateCov, também do ministério, que sugeria a médicos a prescrição de drogas como hidroxicloroquina, cloroquina, ivermectina e azitromicina, tirado do ar pouco depois.
As esperanças alimentadas pelo estudo de Gautret – e outras publicações de Didier Raoult – diminuíram rapidamente, com as observações de outros cientistas e especialistas em ética sobre potenciais erros, até mesmo sobre manipulação, o que foi posteriormente comprovado por investigações das autoridades de saúde.
Estudos científicos de grande escala e com metodologia sólida – o britânico Recovery, o francês Hycovid, ou mesmo o Solidariedade, realizados pela Organização Mundial de Saúde – demonstraram posteriormente a ineficácia da cloroquina e da hidroxicloroquina no tratamento ou prevenção da Covid-19.
O uso das moléculas no tratamento do vírus também tem sido associado a efeitos adversos graves, principalmente cardiovasculares.
Fonte: RBV Notícias